sexta-feira, 13 de abril de 2012

Justina

Chama-se Justina e tem um corpo já velho, amargurado pelo tempo que passou. O tempo é algo que nos consome e nos vai esmagando devagarinho, o corpo, a esperança, o caminho, que parece encurtar a cada dia que passa, deixando-nos por vezes cansados, esmorecidos, mortiços. É particular este efeito do tempo, que se sente de forma distinta de pessoa para pessoa, totalmente dependente da estrutura mental em que a mesma se encontra. É frequente encontrarmos pessoas estruturalmente muito bem organizadas que o encaram como um percurso, deixando na margem do irrisório o quanto tempo ainda terão para caminhar. Por outro lado encontramos outras, menos crentes, mais pragmáticas, que se debruçam na quantidade de anos que lhe faltam para viverem o que planearam, podendo a quantidade ser ou não suficiente para o que ainda pretendem fazer. Temos ainda algumas mentes pouco preocupadas, que vivem ao sabor do dia, e que não pensam sequer no que lhes resta. Justina pensa. Sente que a cada dia lhe roubam outro, mais ou menos assim, como se caminhasse devagarinho para o fim de um corpo que sempre cuidou com esmero, e que agora se apaga e se engelha, comido fora de horas ainda ao cimo da terra, por uns bichos idênticos aos que terminarão a tarefa, daqui a a algum tempo, debaixo do chão. Não gosta da sensação, mas diz-me entre dentes que não suportaria ter de arder. Imagina-se ainda muito viva, a espernear dentro da caixa que derrete rapidamente dentro do forno, enquanto cá fora meia dúzia de corpos choram umas lágrimas secas que não consegue ver, talvez seja da aflição do fogo. E para além disso, diz-me ainda,  precisa de levar com ela meia dúzia de relíquias guardadas no tempo com um cuidado primoroso, e que constam em dois Rosários benzidos em Roma, que irá rezar todos os dias e enquanto a existência não lhe desaparecer completamente, um terço ofertado por sua mãe que Deus tem, a sua aliança de casamento, e ainda a do seu finado marido, que sempre lhe ornamentou o dedo indicador, único do qual não lhe caía nas águas do tanque, nos ares dos campos, na cozedura do pão.
Para além destas vontades, pede-me em segredo dois Trintários Gregorianos, que deverão ser rezados em Fátima, e que lhe darão o tempo suficiente para que desapareça guardada pela palavra do senhor, enquanto a seu lado permanecerão para todo o sempre os valores da sua vida, que lhe permitirão por certo a eternidade. Não fala da roupa que levará vestida. Não lhe importa isso, qualquer uma lhe serve desde que seja composta. Importa-lhe apenas que no final da morte, lhe levem tudo daqui para fora. Não descansaria tranquila se soubesse que o seu melhor casaco comprido, adornado com a pregadeira brilhante em forma de folha, andaria a passear-se no corpo de Arminda, por exemplo, embeiçada por ele desde sempre, e que por certo o usurparia em caso de distribuição.

( Cumpro sempre estas vontades. Quero que descansem, que rezem em paz, que desapareçam tal e qual ambicionaram e na companhia que escolheram. )

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