terça-feira, 6 de junho de 2017

silêncio

Escorreguei numa piscina e espalhei-me ao comprido no chão do hospital. A culpa foi da vaidade, escovava o cabelo com muito jeito, entre uma água no chão, um casaco no braço, um batom na mão, o objectivo era mesmo estar linda quando saísse para a rua. Não consigo, já não sou capaz. Já não há rimel que me erga as pestanas ao infinito, penteado que se segure firme, blush que me torne as maças do rosto salientes o suficiente, e corrector de olheiras que me aligeire os papos dos olhos, construídos uma noite de cada vez, devidamente adensados pelos dias, esculpidos pelo Inverno e corados pelo verão, que acaba sempre por me ir passando sorrateiro pelas frestas das janelas. Olhei em volta e percebi que estava sozinha. Não havia vivalma que por ali estivesse, certamente alguém tinha tomado banho no lavatório e tinha ido à sua vida, quem sabe era uma armadilha devidamente elaborada por algum ser descontente. Sendo assim levantei-me depressa, sacudi as vestes do corpo, sequei as pernas e os pés e fui andando pelos corredores, direita, como se nada me tivesse acontecido, muito embora as dores se instalassem devagarinho como uma praga, no meu pé esquerdo. Foi há quinze dias, e o dito lembra-me a toda  hora que a vaidade custa caro. De cada vez que dou um passo, tremelico. Se ouso colocar um salto, grito. Se os ato num atilho elegante e fino, abano para todos os lados, e de momento, a única coisa que me permite com a placidez do seu orgulho é um ténis jeitosinho, com umas risquinhas douradas, discreto, invisível, sossegado. A senhora amorosa da fisioterapia já me informou que vou ter uns meses penosos, mas pela parte dela, estamos quase despachadas. Fiquei muito feliz ao ouvir isso, nem imaginam quanto. Ela não sabe, mas eu tolero bem a dor residual. Consigo abandonar a vaidade, teimosa e já inglória, consigo encontrar no conforto de um calçado baixo, o suficiente para me sentir segura e satisfeita. Neste preciso momento, só não suporto mais os desabafos das senhoras que bondosamente me afagam os pés. São monótonos, monocórdicos, pouco interessantes, centram-se nas receitas da cozinha, nos arrufos com o marido, nas dificuldades de gerir os velhos da família. Há locais, como por exemplo estes, nos quais deveria ser proibido conversar, sob pena de morarmos num mundo profundamente desequilibrado: ela precisa de falar, na exacta medida em que eu preciso de silêncio. O silêncio não é de ouro, o silêncio é de vidro, parte-se a cada instante, morre em quase todos os locais que eu conheço, debaixo de umas palmas ensurdecedoras. Com todos de pé, altos e elegantes, a gozar o prato do meu pé torcido, dorido e inchado. Barulhento que só visto.  

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